O pesquisador Yuri Lima, do Laboratório do Futuro da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), observou que a aposta de instituições privadas no ensino a distância (EaD), tendência
que se consolidou na pandemia, tem relação com o ritmo de diminuição dos quadros de
funcionários e precarização das condições de trabalho de docentes.
Entre março de 2020 e dezembro de 2021, o número de professores e professoras em
faculdades particulares caiu 7,14%, com a saída de quase 30 mil profissionais, segundo o
Ministério do Trabalho.
Atualmente, parte da carga horária dos cursos é ocupada por vídeos gravados previamente,
que podem ser usados durante anos pelas faculdades, sem atualização, e substituem o
material dado de forma presencial por um professor.
Rodrigo Barbosa e Silva, pesquisador-sênior de políticas públicas em tecnologias do
Transformative Learning Technologies Lab da Universidade de Columbia (EUA), explica que
“vemos talvez há quase duas décadas uma série de cursos online na área de lato sensu [cursos
voltados para atualização e especialização] em que a aula era gravada, algumas vezes com
estudantes presencialmente ou interagindo a distância”.
Há contratos em que a aula gravada fica válida por três anos, com possibilidade de
prorrogação. Ou seja, “a aula que foi feita por um docente, vamos dizer por 10 horas, acaba
sendo retransmitida ao longo de três anos ou mais”.
O principal ponto de virada da tecnologia é o tamanho das turmas: uma sala presencial com,
por exemplo, 50 alunos, que seria considerada “inchada”, a depender do espaço físico, hoje dá
lugar a salas virtuais que comportam até mil alunos. Essas mudanças têm permitido uma
redução significativa de custos para empresas educacionais nas suas folhas de pagamento.
EaD cresce mais de 428% no Brasil em dez anos
Em 2020, o primeiro da pandemia, foi a primeira vez na história que graduações à distância
tiveram mais alunos novos do que cursos presenciais. Em dez anos, o crescimento do EaD foi
de 428% no país.
Antes mesmo da pandemia, uma portaria assinada pelo então ministro da Educação Abraham
Weintraub permitiu que graduações presenciais pudessem ter 40% de aulas virtuais em
relação à carga horária total (uma exceção é o curso de Medicina).
“A diferença entre as duas modalidades é significativa do ponto de vista de estrutura. O
presencial exige muitos professores em sala de aula. Exige uma infraestrutura física,
administrativa, muito grande”, diz Lima.
Yuri Lima faz questão de enfatizar que o ensino a distância não deve “ser visto como vilão”.
“Eu, como uma pessoa que vem da área de tecnologia, acredito muito no potencial dela para
melhorar a educação”, diz. Para ele, “é possível utilizar a tecnologia de forma que amplie a
qualidade em vez de precarizar o ensino e o trabalho.”
Para Barbosa e Silva, “é importante observar que o fenômeno não está na tecnologia, e sim na
estrutura social por trás da educação ou de necessidades financeiras para instituições
educacionais”.
Demissão por “pop-up”
O professor Rodrigo Mota Amarante soube de sua demissão do quadro da faculdade Uninove,
em São Paulo, por meio de um pop-up: uma mensagem que surgiu na tela do computador
quando iniciava sua jornada semanal.
“A demissão por pop-up é muito esquisita, né? Os professores simplesmente entraram no
sistema para dar aula, era uma segunda-feira, dia de aula normal. Então, você acessa o sistema
para dar aula e você está bloqueado: você foi demitido.” Ele afirma: “É muito frio, é muito
distante. Cruel, para ser bem sincero”.
Amarante, com quase 25 anos de carreira como docente, foi desligado em um corte de 300
profissionais da Uninove em 22 de junho de 2020. As atividades do dia para os estudantes
foram substituídas por uma palestra motivacional com participação do ex-secretário municipal
de Educação Gabriel Chalita e do padre Fábio de Mello intitulada “Fortaleça o seu interior e
acredite em você”.
O professor também relata que, de 2017 para 2018, foram demitidos todos os professores do
curso 100% EaD de Engenharia de Produção na Uninove. Ele diz que sente “muita falta de sala
de aula”, mas que “financeiramente não vale a pena”. Hoje, trabalha como especialista de
dados de uma empresa varejista.
Em dezembro de 2020, ocorreu mais uma demissão em massa na Uninove. Segundo o
Sindicato dos Professores de São Paulo, o total de cortes em 2020 representou quase metade
do antigo corpo docente da faculdade.
A Uninove substituiu professores por tutores. Saíram os professores que fizeram os materiais,
que gravaram as aulas, pesquisaram e produziram todo o conteúdo, e foram contratados
estagiários ou recém-formados, com um salário menor.
“É perceptível este movimento em que se busca alguém para dar uma aula magna, para ser o
que se chama muitas vezes o professor convidado, e existem tutores ou muitas vezes
estagiários da própria instituição, ainda cursando a graduação, para fazer o que se chama de
mediação”, diz Barbosa e Silva.
A BBC News Brasil tentou entrar em contato com a Uninove em duas ocasiões, mas, apenas
para encaminhar os questionamentos, a empresa exigiu que o repórter cedesse uma série de
dados pessoais, como CPF. Isso foi recusado.
Precarização
Yuri Lima afirma que, “com o advento da reforma trabalhista de 2017, consolidou-se o regime
horista. Esse regime ficou sedutor para essas instituições que não querem investir tanto na
pesquisa e na extensão [trabalho da universidade de volta para a comunidade, como
atendimento de saúde] e sim contratar docentes de uma maneira que pode ser chamada de
‘uberização’”.
O pesquisador explica: “Se a pessoa está numa posição de carreira, de 40 horas, ela consegue
conversar com estudante sobre pesquisa, sobre o conteúdo da aula, sobre o próprio futuro
profissional”. Os contratados por disciplina ou regimes horistas nem são pagos por esse
tempo, embora os professores “não deixem de atender quando os estudantes estão em
contato”.
Yuri Lima afirma que, além dos reflexos na qualidade de ensino, há um predomínio do que
chama de “EaD conteudista” na formação do estudante. “O quanto que eu consigo
desenvolver habilidades com uma pessoa sentada dentro de casa, assistindo a vídeos e
respondendo um questionário? Isso não atende às demandas do mercado de trabalho mais
moderno”, diz. Para o pesquisador, outro desafio “é de entregar empregabilidade para essas
pessoas estão se formando, ou seja, a capacidade de um aluno egresso de uma instituição de
ensino conseguir entrar no mercado de trabalho com um emprego de qualidade”.
Fonte: BBC Brasil